Plácido Cidade Nuvens
Um dia, perguntaram a Vinicius de Moraes para que servia a poesia. E o grande poeta boêmio respondeu com lúcida espontaneidade: “A poesia serve para transmitir aos outros uma série de experiências peculiares a todos nós. O poeta é um intérprete. É o que dá forma a uma série de sensações, intuições, conhecimentos. Todo o imponderável dos sentimentos humanos é o poeta que revela. Por que > Não sei Provavelmente, por que o poeta é dotado de antenas que lhe permitem sentir o mundo”.
De outra feita, ainda a Vinicius de Moraes perguntaram qual o papel da poesia no mundo contemporâneo, ao que ele respondeu de pronto: “A função da poesia é cantar o que existe de belo. Transmitir a beleza que o poeta detém dentro dele. Como o mundo bonito que ele guarda em si entra em conflito como mundo que o cerca, o poeta se revolta. Daí, acho, nascer frequentemente a poesia social, O poeta é um permanente revoltado. Mas não o considero um desajustado. Partindo daí, o poeta atinge o social, no memento em que este se torna um problema agudo e predomina sobre os demais”
Geir Campos, poeta capixaba de A Rosa dos Rumos e Operário em construção disse certa vez, em entrevista concedida a Olga Werneck: “O que caracteriza o verdadeiro poeta é a sua indignação, a sua falta de acomodação às desumanidades do mundo. O poeta verdadeiro é, antes de tudo, um indignado. Para o poeta, a poesia serve para ele manifestar essa sua revolta; para leitor, a poesia serve para ajudá-lo a formular a sua própria revolta ou fazê-lo sentir que não está revoltado sozinho”.
E então, o poeta capixaba passa à teorização: “A poesia é a mais antiga das artes humanas e a que há mais tempo se encontra na história da humanidade. Bem no começo, a poesia era uma arte muito popular, coletiva como todas as coisas na vida em comum primitiva. Quando a sociedade passou a dividir-se em classes, sempre houve poetas que escolheram a classe dominante e outros ficaram com a classe dominada. Com essa divergência de classes, os interesses divergem e os propósitos da poesia entram nessa divisão: de uns tempos para cá, nota-se evidentemente a coexistência de uma poesia de elite e uma poesia do povo, ou melhor, uma ideologia de elite e uma ideologia popular”.
Gustavo Dahl, investigando a tarefa do artista, na sociedade, coloca o problema nos seguintes termos: “Poder-se-ia estabelecer uma relação dialética entre vida, sociedade e historia, como entre poesia, política e moral, como entre sentimento, consciência e autenticidade. E imaginar o artista tentando realizar a síntese das sínteses, aquela da autenticidade, da moral e da história. No fundo de si própria, cada pessoa sabe que a Idade de Ouro virá, quando sue autenticidade coincidir com a de todos, transformando-se em moral e esta, institucionalizada no Estado, coincidir com o sentido da historia, que é liberdade do homem. O artista é um dos muitos que crêem no advento desta utopia e para ela trabalham”.
Toda esta sinuosa, mas inevitável caminhada teórica, tem sua importância. É ela imprescindível para a compreensão de que a obra poética da Patativa do Assaré, poeta popular de inextinguível memória, cujo centenário estamos a comemorar, sua obra completa extrapola os próprios limites e confins da cultura popular, nobilitando-a. Esse referencial teórico é também fundamental para que se possa compreender em profundidade maior que a vida e a obra de Patativa não se esgotam na modesta configuração dos seus dados biográficos.
Vida e obra do inconfundível bardo sertanejo são luzes de fulgurante luminosidade para quem se dedica a percorrer os caminhos tortuosos do conhecimento do sertão, seus mistérios, seus mitos e desafios, sua figuras humanas, seus problemas sociais, com todo o seu universo fascinante. Aliás, Oswald Barroso, poeta e teatrólogo, já havia assinalado esta imbricação: “obra e autor são a mesma unidade”.
O que faz Patativa no decantado poeta Cante lá que eu canto cá? Apresenta-se como verdadeiro, autêntico e legítimo intérprete do sertão, tala como disse Vinicius de Moraes quando falava que o poeta é um intérprete.
Patativa dá forma poética a uma série de sensações, intuições e conhecimentos capazes de tornarem o sertão mais palpável e mais perceptível na sua realidade inteira, pois plasmadas sob as dimensões de um verdadeiro documentário estético, sua poética descritiva e reveladora do sertão, da sua gente e da sua vida, captadas pelas antenas do coração lírico de um poeta telúrico. Neste documentário estético, que é a obra poética de Patativa do Assaré,, há muita pulsação de vida, há uma grande densidade humana. Este documento estético é uma exaustiva observação apaixonada e uma arguta reflexão, longamente ruminada, que procura o significado pleno da vida do sertão e do sertanejo Por isso, Patativa como poeta intérprete do sertão nordestino não pode esconder a sua indignação ante as desumanidades do mundo do sertão, tal como salienta Geir Campos.
Referindo-se ao livro Cante lá que eu canto cá, Cipriano Carlos Luckesi desenvolve algumas oportunas observações como esta: “Os poemas nele contidos nada mais são do que a observação da realidade e uma reflexão sobre ela, buscando o seu significado, o seu sentido e sal função”.
Nesta vocação de interprete legítimo, porque fundamentado em razões éticas, emerge o traço marcante e inconfundível da vida e da obra de Patativa do Assaré já sublinhado, com arguta perspicácia, por Salatiel de Alencar, na introdução do livro Cante lá que eu canto cá: “O poeta do sertão sofredor tem uma inesgotável capacidade de comunhão e simpatia pelos que vivem humilde e pobremente, pelos fracos, pela gente simples do nosso povo” e salienta: “Seu canto não é de protesto, nem de revolta, mas de compaixão”.
O Professor Joseph Fuchs, em seu livro Teologia Moral, ensina que “a vida de cada homem, em última instância, se consuma num dilema: tem de fazer uma opção fundamental que dê sentido á sua vida, que lhe sublime todas as energias, que oriente todo seu talento e que proporcione toda felicidade ou perder-se nos labirintos alienantes da dispersão banalizante”.
A opção fundamental da vida de Patativa do Assaré foi, permanecendo enraizado na sua cultura, tornar-se intérprete dos seus irmãos sertanejos, num canto de compaixão, mas também de alento e de convocação.
Este mesmo parecer é expresso por Aristides Teodoro, da Tribuna Popular, de Mauá, Estado de São Paulo; “Patativa do Assaré é um poeta preso à sua terra e à sua gente, um desses homens que, antes de tudo, é um humanista cheio de piedade, não só pelo ser humano, mas também pelos animais que sofrem as conseqüências das prolongada secas. O poeta é um homem altamente social, não um revoltado gratuito, mas alguém que sabe denunciar as mazelas de nossa terra”.
Patativa do Assaré penetra mais fundo na realidade do sofrimento e do abandono do sertanejo. Ele não vê apenas a realidade social de abandono, sofrimento e exploração do sertanejo. Vê, sente e chora a situação mental e ideológica do caboclo. Dias da Silva em comentário sobre o livro Cante lá que eu canto, focaliza o realismo da abordagem: “Mais que uma obra de criação pura, de devaneios poéticos, de ficção, Cante lá que eu canto cá é um manifesto de vida em favor do oprimido e dos desamparados. Dos explorados pela ganância dos que já têm muito”.
Este notável manifesto de vida em favor do oprimido é também uma cortante denúncia, uma terrível constatação. O sertanejo grande sofredor vive alienado, rindo do próprio sofrimento. Depois de mergulhar no âmago desta realidade aviltante, sai fortalecido, com energias redobras. Sua voz torna-se mais forte. Rosemberg Cariry, conceituado cineasta cearense informa: “Em todas as grandes lutas sociais e políticas do Ceará, Patativa disse Presente! Quem não se lembra da multidão de 40 mil pessoas, no Comício das Diretas Já, cantando com Patativa a Lição do Pinto?”.
Na sua evolução e maturidade, Patativa do Assaré, segundo a crítica de Moacir Japiassu, supera Catulo da Paixão Cearense. Porque contempla o luar do sertão com o mesmo enlevamento lírico, mas como interprete e porta voz do sertão, apresenta ao caboclo roceiro uma proposta política, mais nacionalista e mais engajada e compromissada, menos deslumbrada, apesar da emotividade telúrica com que se reveste:
“Quero ver do Sul ao Norte / o nosso caboclo forte/ trocar a casa de palha / por confortável guarida / Quero a terra dividida/ para quem nela trabalha; Eu quero o agregado isento/ do terrível sofrimento/ do maldito cativeiro;/ Quero ver o meu país/ rico ditoso e feliz ;/ livre do jugo estrangeiro”.
O artista que não se revolta com as desumanidades do mundo, delas se acumplicia.
A objetividade da obra poética de Patativa do Assaré decorre do seu tino de observador arguto e sensível, partícipe da vida sertaneja, do universo rural, da ideologia cabocla. Patativa não realiza uma produção pura e simples pela força deslumbrante da sua capacidade criativa de gênio. Não é apenas uma obra de ficção. Trata-se, como foi visto, de um documento estético, legado para a posteridade, que assim tem possibilidade de conhecer o coração do Nordeste nos meados do século XX.